Falando de Literatura

O Estranho Caso de Jasmiro (Conto)

06 set 2010 às 10:16

Sempre fora diferente... estranho. Ao completar 15 anos foi a paixão pelo Ave Maria. Tinha que rezar Ave Maria a toda hora: na sala de aulas, no almoço, no jantar, no mercado, até no campo de futebol enquanto os amigos jogavam uma pelada. A mãe começou a sentir vergonha dele, mas não confessava.

– Ele vai ser padre ou frei – comentou para as vizinhas que o olhavam assustadas, nesse domingo ensolarado.


Mulheres, homens, velhos e crianças estavam nas portas das casas, com os olhos fixos no Jasmiro. O bairro inteiro observava-o.
Jasmiro, com ar de beato, o cabelo preto despenteado, camisa e calça brancas, o terço na mão direita e uma imagem de nossa Senhora na esquerda, ia e voltava rezando a Ave Maria.


Era cômico vê-lo caminhar até a esquina e voltar até a portão de sua casa.


Ficava uns minutos parado, levantava a cabeça para enfrentar o céu azul e caminhava de novo até a esquina. O passeio durou horas. Um menino disse que o Jasmiro parecia com um desses brinquedos antigos, movidos a corda.


Aos 16 anos cansou-se do terço. Colocou carvão no pátio, plantas secas, jogou álcool e tacou fogo. Quando as chamas cresciam incentivadas pelo vento de outono, jogou o terço e a imagem de nossa Senhora dentro. Ficou olhando até tudo queimar.


– Ave Maria! — exclamou a mãe assustada – Por que fez isso?


– Virei crente. Não posso adorar imagens.


Então começou a visitar as casas para dizer: Jesus Salva. Tocava a campainha. O moradores saiam e ele gritava: Jesus Salva. Imediatamente encaminhava-se para outra e fazia o mesmo.


Tânia, a artesã que morava no sobradinho pintado de amarelo, com uma palmeira no jardim, não saiu. Jasmiro, teimoso tocou a campainha várias vezes.
A vizinha, também teimosa ficou diante da TV.


– É aquele rapaz maluco — disse Ramona, a diarista, enquanto limpava os vidros da sala.


– Não liga que ele vai embora.


Mas ele não foi. O ruído da campainha incomodava. Ramona queria falar com o rapaz. A artesã, teimosa, enfatizava:


– Esta é minha casa e posso fazer o que bem entender. Não vou sair.


O ruído agudo da campainha incomodava até os vizinhos. A velha que morava do lado, colocou a cabeça para fora da janela e gritou:


– A Tânia não está rapaz! Se estivesse em casa teria escutado... deve ter saído...
– Ela está, sim! — disse ele com voz rouca e infernal – só que ela não quer aceitar a Jesus!
– A Tânia vai à Igreja nos casamentos e batizados – explicou a velhinha.


– Não é o suficiente! – contestou ele enquanto apertava o botão da campainha com força, depois com fúria... apertou... apertou... até que a campainha fez um barulho ensurdecedor e apareceu uma pequena chama laranja com bordas azuis. Um pouco de fumaça ondulante e a campainha deixou de funcionar.
Jasmiro não desistiu. Começou a bater palmas e depois a chutar a porta com violência. Por fim, a artesã saiu.


– Jesus salva ! – gritou o rapaz.
– Só isso?
– Só isso! –— confirmou ele com ar de salvador do mundo.
– Seu filho da mãe! Por isso estragou minha campainha?!


Aos 17 anos, Jasmiro, entrou num movimento orientalista. Então só falava de karma e reencarnação. Era o karma isto e o karma aquilo. A roda da lei e o sermão do Buda. Raspou o cabelo. Fez-se vegetariano. Comprou um pano açafrão que usava como túnica. E falava das Quatro Nobres Verdades e do verdadeiro caminho espiritual. Não dava para aturar.
Fazia questão de ir nas festas dos parentes e enchia a paciência de todos, contando a vida de Buda. Todos fugiam dele. Jasmiro sabia que era preço pela sua devoção.


Sua mudança atingiu a família. Não se podia mais fazer churrascos aos domingos, pois aderira ao vegetarianismo. Ficou magro e pálido. Passava longas horas sentados no jardim repetindo palavras que ninguém entendia, as quais ele chamava de mantras.


A mãe, assustada, levou-o ao posto de saúde para consultar um médico. Contou as mudanças do filho.


– Ele bateu a cabeça quando criança? – perguntou o médico.
– Bateu, sim... – respondeu a mãe – bateu várias vezes no parquinho.


O médico receitou um remédio. O Jasmiro não tomou. Impassível ante os rogos da mãe dizia que era o karma e que iria suportar assim mesmo, sem medicina.


– Os anos passam mas ele não melhora – falou o pai, desiludido enquanto tomava chimarrão na cozinha.
–Já estou perdendo a fé ... ele muda de religião, mas continua o mesmo — confessou a mãe. Colocou o bolo no forno e olhou triste para o marido.
– O problema não são as religiões... todas são boas, velha – acrescentou ele olhando a esposa com carinho. – O problema é mesmo o nosso filho. Ele é fanático como alguns torcedores de futebol.
–Pior que torcedor fanático de futebol – enfatizou a mãe.


Aos 18 anos se fez ateu.


– Se é para o bem dele – dizia o pai.
– Que nada! Desse jeito vai ir para o inferno! – retrucava a mãe.
O Jasmiro nada queria saber... só falava de engenharia genética, de DNA, de métodos para clonar pessoas. Discursava para os vizinhos dizendo que a origem de tudo não era Deus, era o Big Bang.


– Você acha que... o big....bbb.... o relógio da Inglaterra, é a origem de tudo? – perguntou um eletricista que lia o jornal aos domingos e tinha fama de intelectual no bairro.
– Cruz credo... – disse uma costureira.
– O rapaz é louco! –— exclamou Ramona, a diarista da artesã.
– Eu disse Big Bang não Big Ben! – bradava Jasmiro
– Big Bang não é o relógio da Inglaterra, foi a grande explosão que deu origem ao universo – explicava para os menos informados.


Nem ouviam. As fofoqueiras espalharam que o Jasmiro pensava que o relógio da Inglaterra era a origem do universo. Passaram a rir dele. Até as crianças faziam piadinhas sobre o sujeito.


Jasmiro deixou crescer um bigodinho, barba, começou a fumar cachimbo e colocou óculos escuros. Tudo isso para se dar ar de intelectual.


A família estava cansada. Levaram a fotografia para uma benzedeira, fizeram demanda, acenderam velas, queimaram incenso, jogaram água benta sobre ele. Tudo em vão. O Jasmiro virara ateu mesmo.


Sete meses depois de completar 18 anos, a sobrinha da vizinha, a Mariazinha, veio do interior para ficar com a tia que fora abandonada pelo marido. Tinha o cabelo pintado de loiro claro, pele branca e olhos esverdeados. Com um sorriso meigo e um certo olhar de moça independente. Usava blusas vermelhas curtinhas com decotes exagerados e jeans apertadinhos. Escandalizava o bairro mostrando o umbigo e o rebolado.


– Parece uma boneca – pensava o Jasmiro.
Olhava-a de longe quando ela barria o pátio ou saía para fazer compras. Se a Mariazinha o encarava, ele se escondia atrás dos óculos, encabulado.


Um dia Mariazinha estava na porta. Jasmiro olhou-a pela janela e foi até o jardim. Fingiu observar as plantas. O jardim era uma miscelânea: gerânios, margaridas, beijinhos, cravos, rosas, amor-perfeito, tulipas, violetas e outras plantas.


Mariazinha aproximou-se. Ele agachou-se para ver como crescia um amor-perfeito.


– Que está fazendo?
– Olhando o crescimento das plantas.. não precisam de Deus para crescer... só de solo e água –discursou o Jasmiro.
– Você é metido a besta! – disse a Mariazinha – mas eu gosto de você. Tem uma bunda bonita!


Jasmiro olhou para ela sem saber o que dizer. Levantou-se.


– Minha tia saiu. Deixa de olhar as plantas, elas crescem sozinhas. Vamos transar, seu babaca! – quase ordenou a Mariazinha, beliscando-lhe a bunda com um sorriso estonteante.


Ele sorriu timidamente. Vergonha de dizer que era virgem.
– Você tem camisinhas?... –perguntou ela com ar de safada
Jasmiro só mexeu a cabeça para os lados em sinal de negação. Tinha ficado mudo. Mãos trêmulas. Testa suada. Coração pulando do peito.


– Mas eu tenho... – murmurou ela pegando-o da mão.

Nunca mais Jasmiro discutiu sobre a existência de Deus. Agora tinha uma nova diversão. Diversão a dois... e não tinha tempo para especulações religiosas. Passava o tempo todo dando cantada nas meninas do bairro, malhando para ficar musculoso e transando com a Mariazinha, menina insaciável. Para ele o mundo se havia transformado num verdadeiro paraíso.


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