Não fui convidada, mas estou aqui, observando-o. Ele vai até a janela, apóia-se no parapeito e olha para fora. Os ruídos dos motores dos carros e ônibus que trafegam pela Alameda Cabral invadem a sala (estamos no primeiro andar). A subida força os motores e o ruído é mais intenso. Há também sons incômodos de buzinas e ecos das vozes de pessoas que caminham falando alto. Neste quarto só ele e eu. Ele continua a olhar pela janela e, de repente, levanta o braço esquerdo e acena com sua mão sem a aliança (a mão direita segura o copo). Ele mostra o copo e faz sinal para que o outro suba.
Na calçada, perto do ponto de ônibus, um amigo de camisa listrada e barba sem fazer está olhando para cima. Solta uma gargalhada que faz tremer sua enorme barriga e faz um gesto de negação com a mão aberta enquanto grita:
Minha namorada me espera... Sempre com um sorriso enorme (tão proeminente quanto a barriga), vira as costas e se mete no empurra-empurra para subir no ônibus que acaba de parar no ponto.
Por um momento ele fica imóvel, os olhos fitam o chão. Respira fundo. Aproxima-se da mesa da sala e coloca no copo o resto de cerveja . Caminha até a cozinha. Ele tropeça no banco de plástico cor de laranja que está junto ao fogão (podem se ver duas panelas sujas e malcheirosas, uma com repolho e outra com batatas). Abre a porta da geladeira e, com ar de satisfação, enche novamente o copo, caminha até a sala, deixa a latinha sobre a mesa escura - imitação de madeira de mogno.
Tenta evitar-me. Finge que não estou lá, perto dele. Esparrama-se na poltrona verde e liga a televisão. Não quer me olhar, continua fingindo que eu não estou a seu lado. Assiste, sem interesse, a uma das tantas séries sem imaginação sobre um policial que vinga a morte de um parceiro - programas imbecis, murmura - e eu olho para ele, esperando que desligue a televisão. Mas não... ele muda de canal e começa a assistir a um roubo de jóias.
Será que ele sente prazer em ignorar-me, será que gosta de pensar que me fui para sempre? Seu tolo!.. Adeus, falou quando começou o namoro com a loira falsificada que vendia semi-jóias. Adeus, me disse novamente, quando namorou a enfermeira com excesso de quilos nos quadris e cabelo avermelhado. Adeus, insistiu quando trabalhava no Banco e ficava no bar com o grupo de colegas até as duas ou três horas da manhã. Adeus, murmurou quando se apaixonou pela psicóloga de olhos azuis. Adeus, sorriu enquanto dava uns amassos numa mulata que conheceu em um baile de Carnaval.
Adeus, quando namorou a japonesinha meiga da pastelaria da esquina. Adeuses – intermináveis. Adeus, falou pela última vez, duas semanas atrás, no balcão, quando começou a namorar a professorinha da Escola Estadual do bairro...
Mas eles brigaram e eu estou aqui outra vez. E ele me ignora, finge que eu não estou. Permanece sentado na poltrona verde esperança. O que ele espera? Ah!.. quer me mandar embora de novo. Gosta de fingir, o safado. E não é o único, não!.. Homens gostam de demonstrar que são populares. Amados pelas mulheres. Vaidade machista. Porém, não adianta me ignorar, eu sou tenaz.
Ele se levanta preguiçosamente, pisa no jornal jogado ao lado da mesa, caminha até a geladeira e pega duas latinhas. Bebe mais uma (agora diretamente, sem colocar no copo) e assiste à TV. Bebe a segunda, cada vez traga o líquido com mais rapidez. Outra vez se desloca a passos lentos até a geladeira, mais um copo cheio e muda de canal. Olha o telefone... o telefone não toca. Ah!... Ele está esperando uma ligação. É isso. Devagarinho se levanta, deixa a latinha sobre a mesa, pega o telefone e liga para alguém... Dá para escutar a secretária eletrônica, mas ele não deixa recado. Finge que eu não estou, procura outra cervejinha. Seu caminhar é desengonçado (pode ser efeito da cerveja), recosta-se no sofá e pega um jornal do chão enquanto muda os canais.
Eu continuo aqui, olhando-o. Por fim, ele não pode mais ignorar-me. Desliga a TV e grita: Que merda! A solidão é minha única companheira. Ah!.. Finalmente falou meu nome. Obrigada! Muito obrigada!..
Epílogo
Eu sou a única companheira que fica quando todos o abandonam. Eu não sou um vento que passa, como alguns pensam, eu sou uma vibração que ecoa no instante do nascimento e o acompanhará na jornada, até à morte. Sou uma vibração bem próxima da tristeza e do abandono. Uma vibração baixa que se estende desde os pés para o ventre, os ombros, os braços, os ouvidos e os olhos. Uma vibração que contrai o tórax e faz descer a cabeça. E não importa se você tem cargos, títulos, honrarias. Eu enfraqueço os homens. Torno-os crianças desamparadas. Nem tente fugir de mim, porque eu sou persistente, na rua, na cama, diante do computador, ao fechar o livro, ao sair do cinema, ao dirigir o carro, em algum lugar você vai pronunciar meu nome. Vai, sim.... em algum momento você vai dizer: Solidão!..