O relógio aponta que já passou das 23h e estou macambúzio pensando em escrever algo. Porém, não é fácil escrever. Principalmente para quem não goza de grande talento, como parece ser o meu caso. Bons textos dependem de esforço. Tudo isso me faz lembrar da história do escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014).
Gabo é autor de obras maravilhosas e de sucesso, mas nenhuma fez tanto sucesso quanto "Cem Anos de Solidão" (Cien Años de Soledad), um clássico da literatura mundial. Escrevê-lo não foi nada fácil e a obra teve tudo para não ser publicada, mas foi, graças a lances de garra e superação. Um bom exemplo para quem anda desanimado.
O próprio escritor contou sobre a sua trajetória com as letras e como foi o trabalho de produção do livro mais famoso em 2007, durante o IV Congresso Internacional da Língua Espanhola.
- Não sei a que hora tudo aconteceu, só sei que, desde que eu tinha dezessete anos até hoje, não tenho feito coisa distinta que não seja levantar todas as manhãs para encher uma página em branco ou uma tela vazia de um computador, com a única missão de escrever uma história – disse ele para uma plateia em que ninguém sequer ousava piscar.
Aos 38, em 1966, quando já tinha publicado quatro livros, Gabo iniciou "Cem Anos de Solidão".
- Me sentei em frente à máquina de escrever e comecei: "Muitos anos depois, frente ao pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai lhe levou para conhecer o gelo." Não tinha a menor ideia do significado nem da origem dessa frase e nem de para onde ela iria me conduzir. O que sei é que não deixei de escrever durante um único dia durante dezoito meses, até que terminei o livro.
Nesse tempo todo, o casal sobreviveu das economias de Mercedes, mulher do escritor. Eles já tinham dois filhos. Chegaram a ficar devendo seis meses de aluguel.
No meio tempo entre o fim da fase de escrever e o envio para a editora, os originais de "Cem Anos de Solidão" quase se perderam em meio a um temporal. Aconteceu quando Esperanza Araiza, contratada por Márquez para passar a obra a limpo, deixou escapar as folhas de suas mãos no momento em que descia do ônibus indo para casa, em meio à tempestade. Por alguns instantes, diversas páginas do que viria a ser um livro consagrado flutuaram em poças no meio da rua. Não havia "becape", era tudo datilografado.
- (Esperanza) as recolheu, ensopadas e quase ilegíveis, com a ajuda de outros passageiros, e as secou, em sua casa, folha por folha, com um ferro de passar roupas.
Se não sucumbiu no meio do aguaceiro, a obra foi barrada momentaneamente pela falta de grana. Morando na Cidade do México, Gabo e Mercedes tinham de enviar os originais para a "Editorial Sudamericana" em Buenos Aires. Foram ao Correio.
- O empregado pôs o pacote na balança, fez seus cálculos mentais e disse: "São 82 pesos". Mercedes contou as notas e as moedas soltas que tinha na carteira e enfrentou a realidade: "Só temos 53." Abrimos o pacote, o dividimos em duas partes iguais e mandamos uma para Buenos Aires, sem perguntar sequer como íamos conseguir o dinheiro para mandar o resto. Somente depois demos conta de que não havíamos mandado a primeira e sim a última parte.
Paco Porrúa, da Editorial Sudamericana, ao ler o livro do meio para frente ficou ansioso para ler a primeira parte e se apressou em enviar dinheiro para o México, possibilitando ao casal postar o restante das folhas.
"Cem Anos de Solidão", ainda segundo depoimento de seu autor no referido congresso, vendeu mais de 50 milhões de exemplares e foi traduzido para 39 idiomas. Em 1982, pelo conjunto de sua obra, o homem que chegou a não ter dinheiro nem para mandar seus originais para a editora ganhou o Nobel de Literatura.
A vida dá voltas e elas costumam reservar boas surpresas para quem trabalha com afinco.
Se quiser ver esta história contada, em vídeo e em espanhol, pelo próprio García Márquez, eis o link: https://www.youtube.com/watch?v=BWKQxvf3hgw
Nota do autor.
Mudei o nome do blog para escrever mais notícias e menos crônicas. Mas ocorre que é novembro, quando tudo anda tão agitado, sobretudo com o final de mais um semestre letivo. Falta-me tempo para escrever notícias. Portanto, a crônica acima.
Não estou dizendo que é mais fácil escrever uma crônica do que uma matéria jornalística. Pelo contrário, é tão difícil quanto. O fato é que uma notícia precisa ser devidamente apurada. Passava das 23h quando escrevi este texto. Nenhuma fonte me atenderia neste horário.
Como a vontade de digitar era grande, lembrei-me da história do Gabo e tracei tortuosas linhas. Grato pela compreensão.