O texto é longo demais para um blog, mas a história vale a pena. Uma das matérias de perfil que mais curti fazer até hoje.
A foto é do padre Sasaki. Ao fundo, a nova sede da casa de recuperação para dependentes químicos. Mais uma empreitada do homem que salvou o povo do Norte do Paraná da hanseníase.
Uma história de amor escondida no sertão
Uma bela história escondida entre as montanhas de São Jerônimo da Serra. Assim pode ser definida a saga de Haruo Sasaki, 79 anos, um padre japonês que dedica mais de cinco décadas de sua vida aos pobres do Norte do Paraná. Franzino, vestes simples, fala tranquila e riso fácil, o homem que fundou um hospital especializado em doenças dermatológicas e salvou uma infinidade de marginalizados pela hanseníase tem a humildade de ainda se questionar se fez tudo por amor puro ou se há um pouquinho de orgulho no meio de sua obra.
Ex-soldado da Segunda Guerra Mundial, ele - por acaso, como gosta de dizer - veio para o Paraná como voluntário. Acontece que os japoneses que chegavam à terra vermelha na segunda metade do século 20 tinham sede de ouvir a língua pátria, por isso dom Geraldo Fernandes, bispo de Londrina na época, solicitou ao Vaticano que padres nipônicos viessem para a cidade. O pedido chegou à diocese de Yokohama, onde trabalhava o jovem padre Sasaki.
Assim que soube que o Brasil requisitava sacerdotes de olhos puxados, candidatou-se. Corria o ano de 1958 quando ele desembarcou em São Paulo (SP) para encarar uma viagem de ônibus até Londrina. ''O asfalto ia só até Sorocaba, depois era tudo terra. No caminho vinha questionando como seria possível morar gente em tão distante sertão'', recorda.
Ele já havia passado pela amarga experiência da devastação da guerra. Viu sua cidade natal, Hamamatsu, inteira destruída. Morou em um cômodo de 10 metros quadrados com a família de oito pessoas enquanto a cidade renascia das cinzas. Antes, ainda na caserna, sofrera as perseguições de um superior, que, sabendo de sua fé cristã, o chamava nas madrugadas para questionar se a maior divindade era o imperador do Japão ou o Deus de Sasaki. ''Eu ficava calado'', conta o padre. Diante disso, a ''missão sertaneja'' era coisa fácil.
Depois de 12 anos trabalhando em Londrina, foi enviado para Cornélio Procópio. A história do padre começava a mudar. Foi numa Semana Santa - aquela que antecede a Páscoa para os católicos - que o bispo de Cornélio o mandou para São Jerônimo da Serra para confessar o povo. ''Casualmente encontrei na rua um homem com os braços enfaixados por causa de hanseníase. Questionei-o sobre as feridas e ele me respondeu que havia sido uma picada de cobra. Mas descobri que ele tinha era vergonha, por conta do imenso preconceito, de admitir que tinha a doença'', explica.
Aquele caso comoveu o padre. Por conta própria, foi mexer nos prontuários esquecidos em cima do armário do posto de saúde. Constatou que havia muitos hansenianos abandonados na zona rural. Saiu a procurar. Em um mês, achou 120. ''Eles moravam em casas de sapé, em uma realidade muito pobre''. Mais tocado ainda, decidiu fundar, na pequena São Jerônimo, que hoje tem 11,5 mil habitantes, um lugar onde essas pessoas pudessem receber tratamento. Nascia a Sociedade Filantrópica Humanitas. ''Pensei em vender o pouco que eu tinha para comprar o terreno onde estamos, de cinco alqueires, mas era insuficiente. Então, contei do meu desejo a uma família japonesa que eu nunca tinha visto pessoalmente, mas que conversava por cartas. Surpreendendemente, eles mandaram o dinheiro para eu comprar as terras'', relembra.
Os próximos passos eram: buscar mais conhecimento sobre como lidar com as pessoas, arranjar um médico especialista, angariar dinheiro para construir o hospital e trazer para o Brasil uma congregação de religiosas que o ajudasse. Um pé depois do outro, ele deu todos os passos: fez a faculdade de Serviço Social na Universidade Estadual de Londrina (UEL), convenceu um certo doutor Ito, médico japonês, a vir cuidar - por um mês - dos portadores de hanseníase no Brasil e trouxe as freiras da Congregação do Imaculado Coração de Maria de Nagasaki para ajudá-lo. Corria 1980.
O doutor Ito passou seus conhecimentos para o médico Mauro Filgueiras, que até hoje atende no hospital. Uma entidade japonesa foi generosa e ajudou financeiramente o padre Sasaki até 2007. ''Mas os brasileiros também tinham que ajudar, afinal o nosso trabalho era no Brasil. Por isso, peguei um jipe Willis 1952 e saí a angariar fundos.'' A Alemanha, designada por uma associação mundial de hansenianos a ajudar os doentes do Brasil, também colaborou com a obra do padre. ''Deus providenciou tudo. Um dia apareceu por aqui um padre belga e me arranjou 30 mil dólares'', relata.
Hoje, o hospital de padre Haruo Sasaki, que sempre foi de dermatologia geral e não de ''leprosos'' para evitar o preconceito, já está no prontuário 1.526 para os casos de hanseníase e no 34.500 para outros casos de dermatologia. Tem laboratórios de causar inveja. É referência. Atende a pessoas de dezenas de municípios. Porém, continua sendo necessário matar um leão por dia. Arrumar dinheiro é preciso. A maior receita vinha da venda de própolis, produzido por 70 famílias da região, para os japoneses. Mas o real forte e a tal crise mundial fizeram as vendas caírem bastante. Um convênio celebrado com o governo estadual foi a salvação da lavoura. A Fundação Humanitas mantém ainda uma casa de recuperação de dependentes químicos e um centro de ensino rural.
O padre fala da sua história como se tratasse da coisa mais simples do mundo. Nem parece nascido no Japão, mas enraizado em São Jerônimo da Serra. Torcedor do Grêmio Porto-alegrense, ala esquerda no futebol, não troca o ar gelado da cidadezinha do Norte do Paraná por nada. ''Se eu não sou feliz, quem pode ser?'', responde quando questionado sobre a felicidade. Acorda às 6h, celebra missa às 6h45 e cumpre expediente no hospital das 8h às 17h. Gosta de café, de cerveja e de orquídeas. Esse é o padre Sasaki, sacerdote que não usa batina porque acha que ela o afasta dos pobres. (W.S.)