"Teu corpo não te pertence".
Essa frase me trouxe alívio. É que por anos carreguei sentimento de culpa por ter presenciado, aparentemente sem ação, os últimos momentos de consciência da minha mãe, durante o AVC que a levou, em fevereiro de 2003.
Sem ter noção de que seria aquele o capítulo final de nossa história juntas, eu, naquele instante, assistindo-a passar mal na sala de observação, estava preocupada com a movimentação de corredor de médicos e enfermeiras, que haviam nos deixado sozinhas por algum tempo. Não imaginava que dali a pouco ela não voltaria mais - nem a me ouvir nem sorrir pra mim.
(Mais do que mãe, ela era minha melhor amiga, a pessoa pra quem eu telefonava todas as noites pra contar as boas e as más do dia, fofocar e dar risada).
Quando parou de conversar comigo, sentei-me ao lado, aguardando apenas. Mesmo aflita, eu pensava tratar-se de mais um episódio de pressão alta, igual a outros anteriores, sem grandes consequências.
Minutos depois, dona Cecy tentou se comunicar e enrolou a língua. As palavras já não saíam. O cérebro começava a pifar, fechando as portas da consciência. Saí correndo, gritando por um médico.
Depois, tudo virou cena de filme: enfermeiras, maca, médico, UTI. Ela foi levada para longe, a portas fechadas. A próxima vez junto da Cecy seria para as despedidas de um corpo ainda quente, cuja alma já havia voado para longe. (Ou estava bem ao meu lado).
A culpa andou comigo muito tempo. Porquê não dei atenção a ela no momento final. Porquê não lhe dirigi palavras de carinho. Não peguei na mão dela. Não a confortei. E porquê não chamei antes pelo médico, não pedi ajuda mais cedo. Esperei demais? Porquê quedei-me ali naqueles instantes, sem iniciativa, nós duas sozinhas numa sala fria? Se eu tivesse pedido socorro antes, ela teria sido salva?
Tive tanta vergonha daqueles momentos que nunca contei a ninguém. Até que, tempos depois, tomei coragem e abri para meu terapeuta: eu havia deixado minha mãe morrer sem me despedir decentemente, sem lhe dar atenção devida, sem agir?
O homem que investiga minha mente foi firme. Não, respondeu de pronto. No hospital, a partir do momento em que se está em mãos de profissionais da saúde, teu corpo não mais te pertence. Eles é quem têm o poder de decisão. Esta é a profissão deles. Simples assim.
O tempo passa e eis que me torno protagonista de situação parecida. Dessa vez, tudo muito diferente. Mais leve, sem gravidade - e engraçado.
No dentista, em procedimento chatérrimo: pós-cirurgia, intervenções de rotina para checagem. Estou naquela terrível cadeira, onde ficamos todos tão frágeis, com metade da boca anestesiada, sem poder falar, nem me mexer. Só posso prestar atenção nos movimentos da dentista e tentar abstrair.
Ela, pegando instrumentos dos quais não tenho ideia do tamanho nem formato, fazendo coisas dentro da minha gengiva que mal posso imaginar - e nem quero saber - começa a conversar... com as assistentes:
"Fulana, bota replay nesse DVD por favor? Não é ótimo esse show? Já pensou que cada paciente que chega assiste pela primeira vez e nós vemos duzentas vezes por dia? Graças a Deus que é tão bom! Beltrana, soube da dona Coisa, que se mudou semana passada? Então menina! O negócio lá não deu certo! Já pensou? Ô querida, boquinha mais aberta aí por favor? Isso! Ai como eu gosto dessa música! Joaninha, não é desse tamanho que eu preciso. O B63 não é melhor? Ou será que aqui vai o L44 mesmo? Daquiapouco boto você pra cuspir tá querida"?
É. Nessa hora, definitivamente, meu corpo não me pertence. Não passo de uma mera boca aberta, inerte, sem direito a dor, nem vontade própria... ainda bem que minha dentista é competente!